Apólogo

Apólogo

"O velho Torquato dá relevo ao que conta à força de imagens engraçadas ou apólogos. Ontem explica o mal de nossa raça: preguiça de pensar.
E restringindo o asserto à classe agrícola:

- Se o governo agarrase um cento de fazendeiros dos mais ilustres e os trancasse nesta sala, com cem machados naquele canto e uma floresta virgem ali adiante; e se naquele quarto pusesse uma mesa com papel, pena e tintas, e lhes dissesse:
"Ou vocês pensam meia hora naquele papel ou botam abaixo aquela mata", daí cinco minutos cento e um machados pipocavam nas perobas!... "

(Monteiro Lobato - Cidades Mortas)

segunda-feira, 13 de junho de 2016

NÓS, OS CAPITÃES DO MATO



Somos a atual classe média brasileira. Chegamos aqui de diversas maneiras:
Alguns ascenderam na Era Lula, outros vieram “de cima” por meio de um pai que faliu e a família precisou se reajeitar com menos luxo. Outros, sempre mantiveram este posto econômico.
A especulação imobiliária afastou os funcionários que construíram as cidades, mas nós permanecemos nos centros urbanos, endividados ou não. Viemos do interior, com alguma história triste para contar: Um bisavô que laçou uma índia, um tataravô que estuprou uma negra escravizada.
Somos assim, “mamelucos”, mas sempre pendemos para o lado do opressor. Batemos no peito com orgulho pra contar nossa ascendência portuguesa, espanhola ou o que seja. Ninguém quer mencionar a ascendência “pobre” na família.
Somos filhos da história da repressão, mas também de muita resistência, mesmo que não saibamos. Somos filhos de conflitos e vivenciamos conflitos, mas preferimos não nos posicionar.
Vivemos numa recém-democracia e temos acesso a tudo. Somos consumidores de jornais, formadores de opinião e estamos diariamente conectados com a internet, com a velocidade e imediatismo da informação.
Muitas coisas acontecem ao nosso redor e pouco participamos, a não ser para darmos nossa “valiosa” opinião.
Há uma semana, por exemplo, uma moça sofreu um estupro coletivo no Brasil, o caso repercutiu muito, e onde estávamos? Atrás da tela do computador brincando de detetives.
Herdamos dos nossos antepassados patriarcais, o costume de culpabilizar a vítima. Com certeza o fizeram com a nossa bisavó índia, tataravó negra. Julgamos o comportamento, o passado da vítima, sua sanidade, seu poder de decisão. Quando isso não foi o bastante, criminalizamos o Funk, a roupa, o horário, a favela. Tudo, menos os estupradores.
Há meses cinco jovens negros foram fuzilados com 111 tiros de graça. Todos os dias a juventude negra é executada nas favelas. Todos os dias uma bala perdida “acha” um negro. E todos os dias a culpa é dos costumes, da música, do jeito de andar. E por que não dizer logo: Do nosso racismo?
O que há conosco? Qual é o nosso problema com a periferia? Em que momento da nossa história nós deixamos de nos identificar com nossos pares e passamos a nos sentir parte da “Casa Grande”?
Qualquer criança consegue desenhar uma pirâmide econômica e compreender que estamos aqui embaixo. Nós, os “viados”, os sem terra, a garota estuprada, o Amarildo, os cinco meninos.

Acontece que a classe média tem a sina de ser Capitão do Mato¹.

Esse sentimento foi cirurgicamente acoplado, ano após ano, seja em momentos históricos de tensão, seja por propagandas publicitárias na Ditadura Militar. Também por religiões eurocêntricas que nos moldam e que criminalizam as matrizes africanas, e, entre várias outras coisas, por todo nosso passado de exploração.
O chamado “brasileiro médio” não se posiciona. E não percebe que é em sua inércia que a violência cresce. Não percebe, ou não quer perceber, que essa violência tem lado e cor.
O estudante, o intelectual, que senta e assiste a tudo, inevitavelmente violenta!
E é preciso fazer autocrítica sobre o que está colocado.
Na última sexta-feira (3), o mundo perdeuMuhammad Ali – ícone desportista, ícone como ser humano e militante. Ali, em uma de suas entrevistas, afirmou que sempre foi um bom cristão e serviu humildemente à cidade que vivia, e que, quando trouxe sua primeira medalha olímpica ao seu país, sentou-se numa lanchonete da sua cidade e pediu um cachorro quente. O que foi negado. A justificativa: ele era negro. Ali finaliza a história:“Neste dia, então, me tornei muçulmano”.


No exemplo, o negro empoderado supera o estigma de Capitão do Mato. Para isso acontecer é preciso entender o que somos e a quem servimos, na vida e na política.

“É a repetição de afirmações que leva a crer. E, quando a crença se transforma em convicção, as coisas começam a acontecer.” Muhammad Ali – o maior boxeador do mundo.”
O momento político em que o Brasil vive é exemplo disso: Nunca seremos convidados a sentar à mesa dos patrões. Mas insistimos em nos dividir, numa irreal sensação de superioridade.
A classe média precisa sacar que os biscoitos que nos dão é convite para a manutenção do status quo, onde poucos detêm muito e muitos não detêm nada. E, para continuar essa lógica de exploração, precisam contar conosco, fazendo nosso trabalho de cães de guarda.
A história repete-se, “como farsa ou tragédia”. A classe média segue tragicamente cumprindo o papel que lhe cabe: Entregando os irmãos para o Coronel.
Eternos coadjuvantes. E nada livres.

¹ “O capitão do mato era na origem um empregado público da última categoria encarregado de reprimir os pequenos delitos ocorridos no campo. Na sociedade escravocrata do Brasil, a tarefa principal ficou a de capturar os escravos fugitivos.
O termo capitão do mato passou a incluir aqueles que, moradores da cidade ou dos interiores das províncias, capturavam fugitivos para depois entrega-los aos seus amos mediante prêmio.
Os capitães do mato gozavam de pouquíssimo prestígio social, seja entre os cativos que tinham neles os seus inimigos naturais, seja na sociedade escravocrata, que os considerava inferiores até aos praças de polícia, e os suspeitava de sequestrar escravos apanhados ao acaso, esperando vê-los declarados em fuga para depois devolvê-los contra recompensa.
O artista alemão Rugendas, viajando no Brasil em 1822-1825, retratou um capitão do mato negro, montado a cavalo e puxando um cativo (também negro) com uma corda.
O autor Martins Pena, ao adaptar a figura ridícula de Pantaleone do teatro italiano para o cenário do Brasil, o colocou naquela profissão (“O Capitão do Mato”, 1855).

Capitão do mato
Rugendas, 1823” Fonte: Wikipedia
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Luara Colpa é brasileira, tem 28 anos. É mulher em um país patriarcal e oligárquico. Feminista e militante por conseguinte. Estuda Direito do Trabalhador e o que sente, escreve. 

quarta-feira, 25 de maio de 2016

TRINTA HOMENS

Trinta.
Vinte e nove
Vinte e oito
Vinte e sete
Vinte e seis
Vinte e cinco
Vinte e quatro
Vinte e três
Vinte e dois
Vinte e um
Vinte
Dezenove
Dezoito
Dezessete
Dezesseis
Quinze
Quatorze
Treze
Doze
Onze
Dez
Nove
Oito
Sete
Seis
Cinco
Quatro
Três
Dois
Um
Nenhum.
Eu tiraria todos - um por um - de cima de você neste momento irmã.  Eu limparia seu corpo, tiraria o som dos seus ouvidos, o cheiro deste lugar, as lembranças. Se o tempo voltasse, eu os impediria de terem saído de casa. Todos eles.
Eu desligaria os celulares, os computadores, tiraria baterias dos carros, dos ônibus. Eu faria feitiço, veneno, poção, dor de barriga para todos. Trinta.
Eu te levantaria daí e te levaria pra ver o pôr do Sol no Arpoador, se o mundo girasse ao contrário... Mas o mundo não gira.
Foram Trinta.
Um ex-companheiro e vinte e nove “amigos”. Nenhum deles se compadeceu. Vinte e nove seres humanos toparam se unir à um criminoso.
Trinta.
Trinta e um agora compartilharam. Trinta e dois riram. Trinta e três justificaram. Trinta e quatro se excitaram, trinta e cinco procuram o vídeo neste momento.
Agora o número se torna uma projeção geométrica. A misoginia aparenta infinita, o ódio e o machismo aparentam grandiosos demais. A primeira reação do público masculino em geral é ver o vídeo.
No entanto, quando pensei que fôssemos só nós duas, olhei para o lado e vi três, quatro, cinco. Achegaram-se seis, sete, oito, trinta.
Em segundos fomos noventa, cem, mil, somos milhares por você. Aquele som, aquele cheiro... Queremos que sua memória apague, mana.
E que o mundo nos ouça: “A CULPA NUNCA É DA VÍTIMA!”. Que ecoe.
Que ecoe: Daqui vocês não passam.  Não passarão.
Que cada uma de nós seja porta voz do ocorrido¹ e que nossas mãos sejam denúncia.
Na violência contra a mulher todas metemos a colher.
DENUNCIE.
No site do Ministério Público, Polícia Federal e disque 180. Mexeu com uma, mexeu com todas.


¹- Em tempo: Acaba de ser noticiado que uma garota “Bia” fora estuprada por 30 homens no RJ. O motivo é vingança do ex namorado, que convidou mais 29 “amigos” para estuprar a vítima. Nenhum se absteve, nenhum deles parou os amigos, nenhum saiu do local, nenhum deles se compadeceu com a vítima (que neste momento está hospitalizada).
Não obstante, filmaram o ocorrido, postaram no twitter e muitos outros homens compartilharam em suas redes sociais, fizeram piada e justificaram o crime.
Em segundos, milhares de mulheres se uniram na tarefa da conscientização de umas às outras, da denúncia formal, via PF, MP e Disque 180.
“O correto, nesses casos, não é denunciar o perfil do divulgador do material pela timeline porque isso ajuda a divulgá-lo. 
Ajudem a denunciar, copiando a URL dos twittes e colando nos locais de denúncia dos sites :
Na ouvidoria no site do Ministério Público do RJ (mprj.mp.br/cidadao/ouvidoria) É importante se identificar.
O Ligue 180 também é um caminho para denunciar.”


domingo, 10 de abril de 2016

O pagode brasileiro à margem da Esquerda eurocêntrica - Ou: A barreira quase intransponível da organicidade importada.

Ontem eu lí um texto de um camarada falando sobre Pagode, e dizendo que só foi conhecer Caetano Veloso na vida dele, quando assistindo ESTE vídeo (no 1:41)¹.
Dantes nunca tinha ouvido nem falar do homem.

Eu queria discorrer um pouquinho sobre isso, e sobre nossa Esquerda-eurocêntrica ou no máximo Esquerda-latinoamericana (quando latinoamericana significa Venezuela e Cuba).

Eu, que sou do ABC Paulista, e que toda a minha memória de infância está em 3 lugares:

1- Na minha rua sem saída (sinônimo de solidariedade entre os trabalhadores de São Bernardo do Campo - onde tudo se resumia à vida na rua, desde almoços coletivos, vizinhos que cuidavam da gente a noite quando os pais saíam, onde todo mundo era tio/tia, até os dias de semana em que havia revezamento entre os que nos levavam pra escola.) Tudo era realmente muito coletivo.

2- Na rua da minha tia em São Paulo onde eu passava os finais de semana e onde aprendí a ser corintiana vendo o futebol como instrumento de união na vida das pessoas. As pessoas sempre festejando, churrascos, cerveja, criançada, pagode², todo mundo carregando a mudança do fulano, todo mundo correndo atrás de repor a TV do ciclano que a perdeu com a chuva. A solidariedade brasileira em forma de lugar!

3- No interior de Minas, onde fiz os mais sinceros amigos, de novo, na rua, no buteco, nas rodas de samba na casa da minha vó, onde qualquer garfo vira batuque, e qualquer vacilo vira piada (não bullying - piada).

Eu que carrego essa bagagem e que vim pra BH me tornar militante (e também flertar com o Galão pelos motivos ja expostos aí em cima). Eu sei que o pagode está "en mis venas".

E eu acho incrível o camarada nos contar que conheceu Caetano por Alexandre Pires.
Eu acho Caetano um cara único, monstro, competentíssimo, eterno. Eu acho Alexandre Pires a mesma coisa. SIM. Competentíssimo no que faz.

E um segredo, pra mim, está no mesmo patamar o Grupo Pixote à Belchior (me julguem).

Eu acho que o grandessíssimo erro da esquerda regra geral é ser muito desinteressante. Desinteressante porque eurocentrica, desinteressante porque acha que "la revolución" vai se dar em terras tupiniquins ao som de Silvio Rodriguez e Mercedes Sosa.

Chega a ser chata mesmo. Chata porque pega um menino do movimento estudantil e bota ele pra ler apenas Lênin e Marx e nada de Monteiro Lobato.

Chata porque quando pós moderna, problematiza Monteiro Lobato, José de Alencar.

Chata porque nunca discute Macunaíma, mas compara Revolução Urbana carioca com a Parisiense.

Chata e fria quando atribui comandos de Reforma Agrária baseado via de regra à dinâmica da vida alemã.

Mais irritantemente descabida quando interpreta feminismo à lá “Femmen”, um grupo de mulheres brancas americanas e cosmopolitas, que NADA tem a ver com a nossa realidade.

Aqui é terra de Capitu, eu quero problematizar a vida da Tia Anastácia, e nem precisa vir com a frase de Emma Goldman sobre “dançar é minha revolução”.
Aqui nós já dançávamos meus amores, a barriga ta quente nesse tabuleiro desde a escravidão, e o que somos é Capoeira.

Aliás, enquanto as mulheres brancas se organizavam para o dia internacional e a redução de horas de jornada, a nossa tataravó estava em uma senzala, oxalá estivesse numa fábrica de tecidos.

A esquerda brasileira quando não nacionalista, reproduz o que o capitalismo mais faz conosco: Nos afasta de nossos pertencimentos e nos dita o que copiar.

Não por acaso as “roupitchas” de nossos militantes-quadros-iluminados imita a Europa camponesa. Eu quero ver liderança de boné de aba reta ter o mesmo espaço de fala.

Aqui é miscigenação "adoidada"! A diversidade nos faz ímpares.
Aqui não tem gueto estadunidense e nem há porque haver "lacração" em nossas falas ou militância individual. Isso não é nosso.

Aqui é terra de Maria Felipa, mulher sedutora e forte se unir à uma freira (Joana Angélica), e Maria Quitéria vestir a roupa do cunhado pra lutar e decretar independência da Bahia, (aposto que as três griataram por dentro: Vai Baêa minha pooorra), antes dos enfrentamentos.  Aqui é tudo misturado mermo.

Nosso país de Trombas e Formoso, Canudos, Tenentismo, Malês, mas também é resistência via geral do Maracanã, futebol e pagode dos anos 90. E nossa gente é patrimônio cultural por tudo isso!

O mundo inteiro olha pra nós e vê criatividade, e até quem é de reza sabe: Coração do Mundo, Pátria do Evagelho.
Nós somos fodas.

E mais que isso, sempre nos forjamos em coletivos que nos abraçaram. Portanto, enquanto não abraçarem nosso jeito de ser, enquanto a academia e os intelectuais dobram o nariz para nossos costumes e nossa música, não haverá diálogo que se sustente por muito tempo.

É neste ponto que a esquerda se perde, é bem por aí que os movimentos “auxiliam” as ocupações, mas não fazem parte dela. Não há representação, nem pertencimento.

A metodologia dos espaços de discussão nos traz à tona uma esquerda nostálgica, eurocêntrica, maçante e incapaz de se reinventar.

Portanto, deem o play e escutem o melhor dos anos 90. Reparem que no olhar desse negão vencedor eu vejo mais resistência que muito poema bonito de quem trata o negro como zoológico e produz “material de pesquisa”.



E para os intelectuais não se sentirem tão mal, ainda um segundo link³ com algo que pode os apetecer os ouvidos ou que dialogue minimamente com vossos corações mais frios que a armação de seus óculos:



¹- Só pra Contrariar – Final Feliz Aqui!

²- Ufa, podemos falar a palavra "Pagode", já que: "
A Lei Geral da Copa, deu à Fifa direito à tramitação acelerada dos pedidos de registro de marcas no INPI, logo, a FIFA, registrou  no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), a marca Pagode para proteger fontes de impressão, como a Times New Roman,  Arial, dentre outras. “Pagode”, é a fonte usada na marca do mundial de 2014. 
Ou seja, até 31 de dezembro de 2014, “Pagode” fazia parte do grupo de palavras, expressões e imagens que não poderiam ser usadas em nenhuma atividade comercial. Como por exemplo, Pagode da Boa do Arlindo Cruz."


³- Tom Zé – Complexo de Épico ou “Todo compositor brasileiro é um complexado” Aqui!