Somos a atual classe média brasileira. Chegamos aqui de diversas maneiras:
Alguns ascenderam na Era Lula, outros vieram “de cima” por meio de um pai que faliu e a família precisou se reajeitar com menos luxo. Outros, sempre mantiveram este posto econômico.
A especulação imobiliária afastou os funcionários que construíram as cidades, mas nós permanecemos nos centros urbanos, endividados ou não. Viemos do interior, com alguma história triste para contar: Um bisavô que laçou uma índia, um tataravô que estuprou uma negra escravizada.
Somos assim, “mamelucos”, mas sempre pendemos para o lado do opressor. Batemos no peito com orgulho pra contar nossa ascendência portuguesa, espanhola ou o que seja. Ninguém quer mencionar a ascendência “pobre” na família.
Somos filhos da história da repressão, mas também de muita resistência, mesmo que não saibamos. Somos filhos de conflitos e vivenciamos conflitos, mas preferimos não nos posicionar.
Vivemos numa recém-democracia e temos acesso a tudo. Somos consumidores de jornais, formadores de opinião e estamos diariamente conectados com a internet, com a velocidade e imediatismo da informação.
Muitas coisas acontecem ao nosso redor e pouco participamos, a não ser para darmos nossa “valiosa” opinião.
Há uma semana, por exemplo, uma moça sofreu um estupro coletivo no Brasil, o caso repercutiu muito, e onde estávamos? Atrás da tela do computador brincando de detetives.
Herdamos dos nossos antepassados patriarcais, o costume de culpabilizar a vítima. Com certeza o fizeram com a nossa bisavó índia, tataravó negra. Julgamos o comportamento, o passado da vítima, sua sanidade, seu poder de decisão. Quando isso não foi o bastante, criminalizamos o Funk, a roupa, o horário, a favela. Tudo, menos os estupradores.
Há meses cinco jovens negros foram fuzilados com 111 tiros de graça. Todos os dias a juventude negra é executada nas favelas. Todos os dias uma bala perdida “acha” um negro. E todos os dias a culpa é dos costumes, da música, do jeito de andar. E por que não dizer logo: Do nosso racismo?
O que há conosco? Qual é o nosso problema com a periferia? Em que momento da nossa história nós deixamos de nos identificar com nossos pares e passamos a nos sentir parte da “Casa Grande”?
Qualquer criança consegue desenhar uma pirâmide econômica e compreender que estamos aqui embaixo. Nós, os “viados”, os sem terra, a garota estuprada, o Amarildo, os cinco meninos.
Acontece que a classe média tem a sina de ser Capitão do Mato¹.
Esse sentimento foi cirurgicamente acoplado, ano após ano, seja em momentos históricos de tensão, seja por propagandas publicitárias na Ditadura Militar. Também por religiões eurocêntricas que nos moldam e que criminalizam as matrizes africanas, e, entre várias outras coisas, por todo nosso passado de exploração.
O chamado “brasileiro médio” não se posiciona. E não percebe que é em sua inércia que a violência cresce. Não percebe, ou não quer perceber, que essa violência tem lado e cor.
O estudante, o intelectual, que senta e assiste a tudo, inevitavelmente violenta!
E é preciso fazer autocrítica sobre o que está colocado.
Na última sexta-feira (3), o mundo perdeuMuhammad Ali – ícone desportista, ícone como ser humano e militante. Ali, em uma de suas entrevistas, afirmou que sempre foi um bom cristão e serviu humildemente à cidade que vivia, e que, quando trouxe sua primeira medalha olímpica ao seu país, sentou-se numa lanchonete da sua cidade e pediu um cachorro quente. O que foi negado. A justificativa: ele era negro. Ali finaliza a história:“Neste dia, então, me tornei muçulmano”.
No exemplo, o negro empoderado supera o estigma de Capitão do Mato. Para isso acontecer é preciso entender o que somos e a quem servimos, na vida e na política.
O momento político em que o Brasil vive é exemplo disso: Nunca seremos convidados a sentar à mesa dos patrões. Mas insistimos em nos dividir, numa irreal sensação de superioridade.
A classe média precisa sacar que os biscoitos que nos dão é convite para a manutenção do status quo, onde poucos detêm muito e muitos não detêm nada. E, para continuar essa lógica de exploração, precisam contar conosco, fazendo nosso trabalho de cães de guarda.
A história repete-se, “como farsa ou tragédia”. A classe média segue tragicamente cumprindo o papel que lhe cabe: Entregando os irmãos para o Coronel.
Eternos coadjuvantes. E nada livres.
¹ “O capitão do mato era na origem um empregado público da última categoria encarregado de reprimir os pequenos delitos ocorridos no campo. Na sociedade escravocrata do Brasil, a tarefa principal ficou a de capturar os escravos fugitivos.
O termo capitão do mato passou a incluir aqueles que, moradores da cidade ou dos interiores das províncias, capturavam fugitivos para depois entrega-los aos seus amos mediante prêmio.
Os capitães do mato gozavam de pouquíssimo prestígio social, seja entre os cativos que tinham neles os seus inimigos naturais, seja na sociedade escravocrata, que os considerava inferiores até aos praças de polícia, e os suspeitava de sequestrar escravos apanhados ao acaso, esperando vê-los declarados em fuga para depois devolvê-los contra recompensa.
O artista alemão Rugendas, viajando no Brasil em 1822-1825, retratou um capitão do mato negro, montado a cavalo e puxando um cativo (também negro) com uma corda.
O autor Martins Pena, ao adaptar a figura ridícula de Pantaleone do teatro italiano para o cenário do Brasil, o colocou naquela profissão (“O Capitão do Mato”, 1855).
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Luara Colpa é brasileira, tem 28 anos. É mulher em um país patriarcal e oligárquico. Feminista e militante por conseguinte. Estuda Direito do Trabalhador e o que sente, escreve.
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